Ao refletir a favor do Estado Constitucional de Direito, ao qual nos encontramos hoje, percebo a gravidade que era não possuir um sistema rígido de normas jurídicas que tanto clamou a sociedade entre o início e a primeira metade do século XX. Os eventos históricos comprovam: deixar a força de um Estado na mão de um só homem é um erro que fora pago com sangue e temor e que, mesmo assim, persiste na administração anti-democrática do Oriente Médio e de outras regiões que possuem a autocracia como forma primordial de governo.
A primeira metade do século XX é marcado pela filosofia da autonomia da lei como "expressão da vontade geral do povo soberano", pelo menos formalmente. No dizer material, do fato real, os ditadores das leis eram os governantes que contribuíam no sentido da constituição de um governo discricionário que permitia a fácil manipulação da fonte imediata do direito, a lei, de acordo com a "vontade soberana do soberano", e não do povo. Lei como expressão individual e subjetiva do soberano, o que só poderia desembocar em arbítrios fúnebres, que irresponsavelmente permitiram que a sociedade vivenciasse as terríveis experiência de um mundo mergulhado no crepúsculo da injúria. Interessante notar: em alguns desses governos, o consentimento expresso ou tácitos de tais ações era visto entre os indivíduos da população, o que legitimou as práticas hediondas executadas pelos soberanos no poder. As pessoas são facilmente ludibriadas pelo discurso do sensu comum, do topos da argumentação, deixam-se levar pelas palavras que se encaixam perfeitamente aos momentos de dificuldade, a subsunção ideal, na fase em que os ânimos estão a flor da pele. O sentimentalismo momentâneo é perigoso, transforma as pessoas em fantoches da argumentação, e quando levado ao limite, as fazem criminosas de si mesmas, de seus ideais, de seus princípios. Levam-nas a praticar atos que jamais achariam possível uma ser humano intentar contra outro.
De fato, a ascensão dos regimes autocráticos tem grande relação com o aspecto ontológico ao qual se encontrava o direito nessa fase da história, uma vez que foi através de meios lícitos que os ditadores foram ao poder e configuraram avassaladores atos desumanos. A doutrina jurídica da primeira metade do século XX estava retida ao aspecto científico do direito, o positivismo, que equiparou o direito à lei e à autoridade, afastando os valores da justiça, da dignidade e da razão, que permearam durante o reinado do jusnaturalismo, no mundo jurídico. Com o positivismo, o Estado era o grande monopolizador da produção de normas, e admitia a lei como fonte exclusiva do direito. Os poderes públicos, as normas em vigor, a autoridade, eram todos tidos como legítimos se estivesse de acordo com as formalidades estipuladas pela lei, ou seja, se emanadas de autoridade competente, se respeitavam os procedimentos de emissão da mesma, sem nenhuma preocupação com os aspectos substanciais ou materiais de sua existência, ou seja, do conteúdo, da carga axiológica da norma jurídica, do sentido que traz a lei.
Esse foi o marco fundamental da teoria do Estado de Direito, ou na Alemanha o Rechtsstaat, como assinala Ferrajoli: “Em sentido fraco, amplo ou formal designa qualquer ordenamento em que os poderes púbicos são conferidos pela lei e exercidos nas formas e com os procedimentos por ela estabelecidos”. Nesta época, não existia hierarquia entre as normas do ordenamento, nem uma constituição rígida que garantisse a preservação dos direitos fundamentais do ser humano, como base primordial do direito, nem o devido respeita a dignidade da pessoa humana, como valor essencial e bem jurídico maior ao qual deveria a Constituição resguardar. Dessa forma, a ascensão do Fascismo e do Nazismo ocorreram de maneira legítima, nas conformidades do direito posto, obedecendo a todos os trâmites legais impostos.
Destarte, a doutrina positivista falhou quando os governos totalitários executaram atrocidades que marcou a história da humanidade de maneira inefável e legitimou o genocídio, os crimes contra a humanidade, a limpeza étnica e racial. Acontece que, o soberano pode modificar as leis para facilitar a conquista das suas pretensões e interesses através do princípio da legalidade, ao qual todas as normas jurídicas existem e são válidas, desde que sejam postas por uma autoridade dotada de competência normativa, fundamentado no princípio positivista “auctoritas, non veritas facit legem”.
Tornou-se fácil para os autocratas modificar a lei em seu favor, sem nenhum questionamento sobre sua validade ou legitimidade, uma vez que era a autoridade soberana instituída. Foi preciso que o povo assistisse e vivenciasse esse momento sombrio da história mundial para pensar uma nova roupagem ao direito, um meio de garantia que seus filhos e as futuras gerações não passassem por algo semelhante, que trouxe tanta dor e sofrimento à população mundial.
Trazer de volta ao direito os valores essenciais do ser humano, essa era a chave que iria aprisionar os autocratas na história. Leciona Barroso: “Ao fim da Segunda Guerra, a ética e os valores começam a retornar ao Direito, inicialmente sob a forma de um ensaio de retorno ao direito natural, depois na roupagem mais sofisticada de pós-positivismo”. A nova doutrina não tem interesse em um retorno puro e simples aos fundamentos vagos, abstratos e metafísicos da razão subjetiva do jusnaturalismo, mas deseja reintroduzir as ideias de justiça e legitimidade no ordenamento positivo, revalorizando a teoria da justiça e da legitimação democrática.
Com o pós-positivismo foi possível evoluir do Estado Legislativo de Direito para o Estado Constitucional de Direito, que possuía como principal característica a subordinação da própria lei ao uma lei superior, a Constituição, hierarquicamente supra-ordenada à legislação ordinária, tanto em seu aspecto formal como substancial ou material, como assinala Ferrajoli: “O Estado de Direito em que os ordenamentos nos quais os poderes públicos estão igualmente sujeitos e vinculados pela lei, não apenas quanto à forma, mas também quanto ao conteúdo do exercício”. A nova constituição rígida garante a estrita proteção dos direitos individuais e da separação dos poderes, e preserva a dignidade como o valor maior e fundamental do ser humano.
Destarte, o direito trás a certeza e a segurança de que a experiência com regimes autoritários não iram mais ocorrer, uma vez que as normas jurídicas devem possuir o conteúdo coerente, em harmonia com as prescrições de forma e de substância impostos pela constituição. E sendo a lei, em stricto sensu, não dotada de vontade ou sentimentos, nunca será iludida por argumentos políticos baseados em lugar-comum, como o o discurso de Hitler ou o de Napoleão, fundamentado em expressões momentâneas de insatisfação geral, como a falta de emprego, as condições ínfimas de existência, a antijuridicidade, ou, na Alemanha, a "esperança de um futuro promissor com o "Império Germânico" liderado pelo partido nacionalista, o partido da nossa pátria". Tudo fundamentado em topoi, técnicas argumentativas, baseadas em lugar-comum, que desperta sentimentalismo exacerbado, uma vez que são palavras que trazem conteúdo de interesse geral naçãoe grande carga axiológica.
Esse discurso é fixado de uma maneira tão tenaz que induz fanáticos a praticarem crimes hediondos em nome do governante, nesses momentos específicos, quando ausente um sistema jurídico rígido, que regule as interações entre os membros da sociedade e proíba a ação abominável. O que demonstra a força que tem a argumentação na determinação do comportamento humano, repleto de impulsos passionais e emoções extremas.
Yulgan Tenno - 28 de Março de 2011
Nenhum comentário:
Postar um comentário