(LIRA, Yulgan Tenno. Audiência de Custódia e a Tutela Coletiva dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos. In.: LEXMAX: revista do advogado. Comissão do Jovem Advogado da OAB/PB: João Pessoa. Ano 1, n. 3, 2015. Disponível em: <http://ojs.oabpb.org.br/index.php/lexmax/issue/view/6>. Acesso em 23/11/2015.)
RESUMO
O presente artigo tem o escopo de explanar a fundamentação de existência
da audiência de custodia, do ponto de vista interno e internacional, além de
demonstrar como a garantia de obediência de uma norma internacional pode ser
ampliada mediante a utilização de ações coletivas para o exercício do controle
de convencionalidade. Avança-se com a demonstração de que a audiência de
custodia foi fomentada, no Brasil, mediante a utilização do controle de
convencionalidade na ação civil pública, com o consequente aumento da eficácia
da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e do Pacto Internacional de
Direitos Civis e Políticos. Conclui-se que o uso de ações coletivos pode
aumentar o grau de enforcement da
norma internacional de direitos humanos.
Palavras-chave: Audiência de custódia. Tutela coletiva.
Tratado internacional de direitos humanos. Enforcement
reduzido.
ABSTRACT
This article has the scope to explain the existence of
grounds for the custody hearing, the domestic and international perspective,
and how to demonstrate that the obedience assurance of an international
standard can be expanded through the use of collective action for the exercise
of control of conventionality. Forward with the demonstration that the custody
hearing was fostered in Brazil by using the conventionality control in the
public civil action, with a consequent increase of the effectiveness of the
American Convention on Human Rights and the International Covenant on Civil and
Political Rights. We conclude that the use of collective action may increase
the degree of enforcement of the international standard of human rights.
Keywords: Custody
hearing. Collective protection. International human rights treaty. Reduced
enforcement.
1 INTRODUÇÃO
Os Tratados Internacionais de
Direitos Humanos (TIDH), no Brasil, são dotados de natureza jurídica de supralegalidade,
estando acima de todas as normas, salvo a Constituição, conforme jurisprudência
do Supremo Tribunal Federal (STF), veiculada no RE 466.343/SP, em 2008.
Dessarte, possui atributo de
supralegalidade a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Convenção ADH) e
o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP) que, dentre outros
preceitos, estabelecem o dever dos Estados em garantir a apresentação imediata
do preso ao juiz em caso de prisão em flagrante.
Constitui consequência da adoção da
teoria da supralegalidade das normas internacionais de direitos humanos, a
utilização de instrumentos processuais tendentes a conforma a norma de
hierarquia inferior (leis e atos infralegais) com as de hierarquia superior
(TIDH).
Tal mecanismo é conhecido como
controle de convencionalidade, instrumento pelo qual se vale o órgão
jurisdicional para declarar uma norma incompatível frente às convenções
internacionais de direitos humanos.
Contudo, mesmo adquirindo status privilegiado no ordenamento
jurídico pátrio, os TIDH são constantemente desconsiderados na solução de contendas
jurídicas internas, pois não possuem o que se convenciona chamar de alto grau
de enforcement, ou seja, garantias de
observância e aplicação da norma internacional nos processos domésticos do
Estado.
Neste passo, a pesquisa aponta que
as ações coletivas, quando desempenham o controle de convencionalidade, ampliam
as chances de que a norma internacional seja obedecida por todos, pois a coisa
julgada advinda da decretação de inconvencionalidade de uma lei frente o TIDH,
possui eficácia erga omnes,
invalidando a referida lei em toda a jurisdição interna.
Noutro giro, desde que foram
incorporadas ao ordenamento brasileiro, em 1992, pelo rito especifico de
internalização de tratados, o PIDCP e a Convenção ADH (Decreto no 592 e Decreto no 678, respectivamente), permaneceram despidas
de eficácia no que tange a alguns de seus dispositivos, sendo exemplo deles a
audiência de custodia.
Entretanto,
a conjuntura muda quando os legitimadas para a propositura da ação civil
pública (ACP), lastreados pela normativa internacional, passam a se valer desta
ação coletiva para implementar a audiência de custodia no Brasil, no interesse
de parcela da sociedade prejudicada pela não regulamentação de tal instituto
processual penal no País, que já fora previsto por pactos internacionais desde
1992, porém ignorados.
A
discussão levou o CNJ a dar início ao projeto audiência de custódia, com o
objetivo de, paulatinamente, implementar a referida audiência em todo o
território nacional, com a ajuda dos tribunais de justiça dos Estados.
Dessa
forma, o presente artigo tem o escopo de explanar a fundamentação de existência
da audiência de custodia, do ponto de vista interno e internacional, além de demonstrar
como a eficácia de uma norma internacional pode ser ampliada mediante a
utilização de ações coletivas para o exercício do controle de
convencionalidade.
2 A AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA
A audiência de custódia, também
conhecida como audiência de apresentação, é o instrumento processual penal que
tem o escopo de defender a liberdade pessoal e a dignidade do acusado, servindo
a propósitos processuais, humanitários e de defesa de direitos fundamentais
inerentes ao devido processo legal.
Em definição, consiste na
apresentação imediata ou sem demora ao juiz de pessoa presa em flagrante ou sem
mandado judicial pela polícia.
Nessa esteira, diversos países
ocidentais positivaram em seus ordenamentos internos a audiência de custódia,
com a finalidade de fazer cessar “eventuais atos de maus tratos ou de tortura
e, também, para que se promova um espaço democrático de discussão acerca da
legalidade e da necessidade da prisão” (LOPES JR; PAIVA, 2014).
O regramento encontra lastro
normativo no artigo 9º, 3 do PIDCP e no artigo 7ª, 5, da Convenção ADH, tendo
este a seguinte redação:
Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou
outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito
a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem
prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada
a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo. (ênfase acrescida)
No excerto, identifica-se a
expressão “sem demora”, interpretada pela Corte IDH no caso Cabrera Garcia e Montiel Flores v. Mexico (2010),
oportunidade em que não considerou compatível com a Convenção (artigo 7º, 5) o
prazo de 5 (cinco) dias, contados da data da prisão, para apresentar o preso ao
juiz competente, determinado pela legislação mexicana.
Dessa forma, parte da doutrina acena
que a citada expressão deve ser entendida como 24 (vinte e quatro) horas
contadas a partir da prisão em flagrante.
Na CRFB/88, a audiência de custódia
se manifesta na norma que determina o imediato relaxamento da prisão ilícita
(artigo 5º- LXV), o rápido desfecho da investigação e do processo (artigo 5º-
LXXVIII) e pelo princípio do juiz natural, em que o investigado tem o direito
de ter um julgamento justo, com parâmetros previamente estabelecidos (artigo
5º- LIII), e não por tribunal de exceção (artigo 5º- XXXVII). Tais garantias
são inerentes ao devido processo legal instituído pela atual Constituição.
Com isso, o instituto tende a coibir
maus tratos aos presos no momento da prisão, além de exercer papel relevante no
que tange à diminuição da população carcerária, na medida em que a apresentação
imediata do preso ao juiz possibilitará a apreciação da legalidade da prisão em
flagrante e da necessidade da prisão preventiva de forma célere, minimizando a
possibilidade de manter prisões abusivas e desnecessárias.
Registre-se também a possibilidade
de o juiz decretar a prisão preventiva na própria audiência, desde que
presentes os requisitos do artigo 312 do Código de Processo Penal (CPP) – Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de
1941.
Conquanto não exista previsão legal
no Brasil sobre a audiência judicial de custódia, o CNJ, em parceria com os
tribunais de justiça dos Estados federados, vem instaurando a audiência de
apresentação em todo o Brasil, com regulamento estabelecido por cada Tribunal,
diante da lacuna na legislação.
Todavia, tramita no Senado Federal o
projeto de lei nº 554/2011, de autoria do Senador Antônio Carlos Valadares,
propondo a alteração do §1º do artigo 306 do CPP para instituir a audiência de
custódia em 24 horas após a prisão em flagrante.
O texto original do projeto tem a
seguinte redação:
Art. 306. .....
§1º. No prazo máximo de vinte e quatro horas depois da
prisão, o preso deverá ser conduzido à presença do juiz competente, ocasião em
que deverá ser apresentado o auto de prisão em flagrante acompanhado de todas
as oitivas colhidas e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia
integral para a Defensoria Pública.
Dessarte, com o trâmite na Comissão
de Direitos Humanos e Participação Legislativa (CDH), o PL foi contemplado por
uma emenda substitutiva apresentada
pelo Senador João Capiberibe
– aprovada por unanimidade na CDH, conferindo a seguinte redação ao projeto
originário:
Art. 306. (...)
§ 1.º No prazo máximo de vinte e
quatro horas após a prisão em flagrante, o preso será conduzido à presença do
juiz para ser ouvido, com vistas às medidas previstas no art. 310 e para que se
verifique se estão sendo respeitados seus direitos fundamentais, devendo a
autoridade judicial tomar as medidas cabíveis para preservá-los e para apurar
eventual violação.
§ 2.º A oitiva a que se refere o
§ 1.º não poderá ser utilizada como meio de prova contra o depoente e versará,
exclusivamente, sobre a legalidade e necessidade da prisão; a prevenção da
ocorrência de tortura ou de maus-tratos; e os direitos assegurados ao preso e
ao acusado.
§ 3.º A apresentação do preso em
juízo deverá ser acompanhada do auto de prisão em flagrante e da nota de culpa
que lhe foi entregue, mediante recibo, assinada pela autoridade policial, com o
motivo da prisão, o nome do condutor e os nomes das testemunhas.
§ 4.º A oitiva do preso em juízo
sempre se dará na presença de seu advogado, ou, se não o tiver ou não o
indicar, na de Defensor Público, e na do membro do Ministério Público, que
poderão inquirir o preso sobre os temas previstos no § 2.º, bem como se
manifestar previamente à decisão judicial de que trata o art. 310 deste Código.
Em 25/06/2014, o texto recebeu nova emenda substitutiva, de autoria
do Senador Francisco Dornelles,
estabelecendo que a audiência de custódia também poderá ser feita mediante o
sistema de videoconferência. O substitutivo traz a seguinte redação:
“Art. 306. (...)
§ 1.º No prazo máximo de vinte e
quatro horas depois da prisão, o preso deverá ser conduzido à presença do juiz
competente, pessoalmente ou pelo sistema de videoconferência, ocasião em que
deverá ser apresentado o auto de prisão em flagrante acompanhado de todas as
oitivas colhidas e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia
integral para a Defensoria Pública”.
Pondera-se que o texto é de duvidosa
convencionalidade, pois a videoconferência retiraria a possibilidade de contato
direto pessoal entre o juiz e o preso, dificultando a aferição das
circunstâncias corpóreas, além de facilitar a coação e o abuso da autoridade
policial, de forma a induzir o acusado a faltar com a verdade no depoimento
transmitido online.
Ademais, reforçando tal
entendimento, a Corte IDH (2005), interpretando o artigo 7ª, 5 da Convenção
ADH, decidiu que, para os fins
previsto nos TIDH, o detido deve comparecer em pessoa e render sua declaração
exclusivamente perante um juiz ou autoridade judicial competente.
3 PRINCIPAIS DISCUSSÕES SOBRE O INSTITUTO
Consoante aponta Weis (2013), a
audiência de custódia “aumenta o poder e a responsabilidade dos juízes,
promotores e defensores de exigir que os demais elos do sistema de justiça
criminal passem a trabalhar em padrões de legalidade e eficiência”.
Na visão da Diretora do Human Rights
Watch – Brasil, Maria Laura Canineu (2014), o risco de maus-tratos é
frequentemente maior durante os primeiros momentos que seguem a detenção,
quando a polícia questiona o suspeito, pois “Esse atraso torna os detentos mais
vulneráveis à tortura e outras formas graves de maus-tratos cometidos por
policiais abusivos”.
Contudo, apesar da expressa previsão
convencional (dotada de natureza jurídica de supralegalidade), a audiência de
custódia não foi efetivamente implementada em todo o País[1].
Com efeito, o CPP exige apenas que
os documentos policiais do caso, mas não o preso, sejam apresentados a um juiz
no prazo de 24 horas (artigo 306, § 1º), momento em que a autoridade judicial
terá a incumbência de avaliar a legalidade da prisão e decidir sobre sua prisão
preventiva ou liberdade provisória, com base exclusivamente nos documentos
escritos fornecidos pela polícia.
A única circunstância em que a
polícia precisa levar imediatamente o preso perante o juiz, de acordo com o
CPP, ocorre no caso da prática de crime inafiançável, não tendo o policial
exibido o respectivo mandado judicial no momento da prisão (art. 287). Caso
contrário, o detento também pode chegar a não ver um juiz por vários meses
(CANINEU, 2014).
Dessa forma, constata-se que o
encontro entre o investigado e o juiz acaba sendo postergado por meses ou anos,
tendo em vista que o interrogatório é o último ato da instrução (art. 400,
caput, do CPP), somente ao final do processo.
É nesse sentido que Lopes Jr. e
Paiva (2014) afirmam que “o juiz não tem contato com o cidadão preso e, se
decretar a prisão preventiva, somente irá ouvi-lo no interrogatório muitos
meses (às vezes anos) depois, pois agora o interrogatório é o último ato do
procedimento.”
Enfaticamente, prevê o artigo 306 do
CPP que “a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão
comunicados imediatamente ao juiz competente, ao Ministério Público e à família
do preso ou à pessoa por ele indicada”.
Entretanto, a disposição não passa
pelo crivo de convencionalidade, uma vez que a mera comunicação através de
correspondência por escrito inviabiliza a análise judicial sobre o corpus, impossibilitando qualquer
aferição de maus tratos e o contato direto do juiz com o acusado.
Nessa esteira, posiciona-se
reiteradamente a Corte IDH que “o
simples conhecimento por parte de um juiz de que uma pessoa está detida não
satisfaz essa garantia, já que o detido deve comparecer pessoalmente e render
sua declaração ante ao juiz ou autoridade competente” (2005) e ainda
que “o juiz deve ouvir
pessoalmente o detido e valorar todas as explicações que este lhe proporcione,
para decidir se procede a liberação ou a manutenção da privação da liberdade”,
concluindo que “o contrário
equivaleria a despojar de toda efetividade o controle judicial disposto no art.
7.5 da Convenção” (2008).
São muitas as vantagens da efetiva
implementação da audiência de custódia; para elencá-las, foi-se necessário a
reunião dos motivos no Informativo Rede de Justiça Criminal, produzido por
organizações de defesa de direitos humanos, tal qual a Associação pela Reforma
Prisional (ARP), Conectas Direitos Humanos, Instituto de Defesa do Direito de
Defesa (IDDD), Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DDH), Instituto Sou
da Paz, Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), Justiça Global e Pastoral
Carcerária Nacional.
Entre tais vantagens, o citado
Informativo (2013, p. 2) considera as dez seguintes:
1. A Convenção Americana Sobre Direitos Humanos
(Pacto de San Jose da Costa Rica), ratificada pelo Brasil em 1992, dispõe que
“toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um
juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais” (art.
7º);
2. A apresentação da pessoa presa em juízo no
prazo de 24 horas é a maneira mais célere de garantir que a prisão ilegal será
imediatamente relaxada e que ninguém será levado à prisão ou nela mantido se a
lei admitir a liberdade (garantias constitucionais previstas no art. 5º, LXV e
LXVI, respectivamente);
3. A audiência de custódia servirá para que o
juiz i) analise a legalidade e necessidade da prisão e ii) verifique eventuais
maus tratos ao preso havidos até ali, podendo determinar a imediata apuração de
qualquer abuso que venha a tomar conhecimento. No que diz respeito ao controle
da legalidade da prisão, poderá o juiz no momento da audiência de custódia: i)
relaxar a prisão em flagrante ilegal; ii) decretar a prisão preventiva ou outra
medida cautelar alternativa à prisão; iii) manter solta a pessoa suspeita da
prática de determinado delito, se verificar ausentes os pressupostos de
cautelaridade previstos no artigo 312 do CPP;
4. A previsão da ordem dos atos nesta audiência
(Ministério Público requer a medida cautelar que entender adequada e
necessária, a Defesa contra-argumenta e o Juiz decide) é a expressão do
princípio constitucional do contraditório (art. 5º, LV, CF), com a garantia
inerente de que a defesa deve sempre manifestar-se depois da acusação;
5. O depoimento prestado nessa audiência deve
ser autuado em apartado para que não seja manuseado no curso da instrução
criminal e com isso não contamine a prova a ser produzida e discutida no
futuro, garantindo, portanto, que seu conteúdo não seja utilizado em prejuízo
do acusado em futura ação penal;
6. A autuação em apartado do depoimento e a
proibição de que se inquira o preso sobre pontos atinentes ao mérito da
imputação evitam que os avanços da Lei nº 11.719/2008 – que alterou a ordem dos
atos no processo penal, garantindo que o interrogatório do acusado seja o
último ato da instrução criminal, em conformidade com o princípio do
contraditório (art. 5º, LV, CF) –, se esvaiam com a adoção da audiência de
custódia;
7. A obrigatoriedade para que dessa audiência
participe o representante do Ministério Público e o advogado/defensor público é
a garantia de que a lei não contrarie a garantia constitucional de assistência
de um advogado (art. 5º, LXIII), bem como o contraditório e a ampla defesa
(art. 5º, LV);
8. A audiência de custódia representa para o
Estado um instrumento eficiente e ágil para a obtenção e verificação de
informações precisas sobre os procedimentos policiais, evitando que maus tratos
e práticas de extorsões continuem a ocorrer impunemente;
9. O controle imediato da legalidade,
necessidade e adequação de medida extrema que é a prisão cautelar será uma
forma eficiente de combater a superlotação carcerária, sempre tendo em conta
que a excessiva política de encarceramento em massa atinge com muito mais força
a camada mais pobre e marginalizada da população brasileira;
10. A apresentação imediata da pessoa presa ao juiz
é o meio de garantir que um cidadão passe o menor tempo possível preso
desnecessariamente, ainda que não possua advogado constituído, circunstância
que caracteriza a maior parcela da população prisional.
O Ministro Gilmar Mendes, em voto no
HC 119095 (STF, 2014), caso emblemático de abuso da prisão cautelar, também
ponderou as vantagens da audiência de custódia, refletindo se, no Brasil, já
não seria o momento de “começar a exigir, talvez, aquilo que está já na
Convenção Interamericana de Direitos Humanos: a observância da apresentação do
preso ao juiz ”.
No mesmo sentido, pondera Henry
Lopes Junior e Paiva (2014):
São inúmeras as
vantagens da implementação da audiência de custódia no Brasil, a começar pela
mais básica: ajustar o processo penal brasileiro aos Tratados Internacionais de
Direitos Humanos. Confia-se, também, à audiência de custódia a importante
missão de reduzir o encarceramento em massa no país, porquanto através dela se
promove um encontro do juiz com o preso, superando-se, desta
forma, a “fronteira do papel” estabelecida no art. 306, § 1º, do CPP, que se
satisfaz com o mero envio do auto de prisão em flagrante para o magistrado.
No que tange ao direito comparado, a
experiência demonstra o êxito da audiência de custódia, inclusive quanto aos
fins propostos, apesar de a simples previsão normativa não ser suficiente para
eliminar por completo a prática de abusos nas detenções (CANINEU, 2014).
Na Argentina, por
exemplo, o Código de Processo Penal federal exige que, em casos de prisão sem
ordem judicial, o detento compareça perante uma autoridade judicial competente
no prazo de seis horas após a prisão. No Chile, o Código de Processo
Penal determina que, em casos de flagrante, o suspeito seja apresentado dentro
de 12 horas a um promotor, que poderá soltá-lo, ou apresentá-lo a um juiz no
prazo de 24 horas da prisão. Na Colômbia,
o Código de Processo Penal prevê
que, em casos de flagrante, o detento precisa ser apresentado ao juiz no prazo
de 36 horas. No México, para a
maioria dos tipos penais, pessoas detidas em flagrante precisam ser entregues
imediatamente aos promotores, que, por sua vez, devem apresentar os suspeitos a
um juiz no prazo de 48 horas ou liberá-los (CANINEU, 2014).
4 O BAIXO GRAU DE ENFORCEMENT DA NORMA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E O CORRELATO DANO COLETIVO
O termo enforcement pressupõe o fazer valer da norma, a garantia de sua
observância e obediência. Uma norma possui alto grau de enforcement quando conta com instrumentos que garantem sua
aplicação no caso concreto.
Na acepção de Christian J. Tams
(2005, p.8), o conceito de enforcement,
no direito internacional, compreende
formas de induzir outro Estado a cessar sua conduta ilícita e sanar as
consequências. Para o direito interno, são as providência tomadas pelo Estado
para limitar sua própria força e induzir a obediência aos diplomas
internacionais que se compromete observar.
No Brasil, diversos TIDH possuem a
executoriedade comprometida pelos juízes internos, que não se valem dessas
normas para resolver a demanda judicial.
Ao passo que o direito processual
civil não oferece uma resposta efetiva para sua tutela, como uma ação direta
que proteja essas normas supralegais, devendo o aplicador do direito se
utilizar de métodos subsidiários, como as ações coletiva, para aumenta o grau
de enforcement dos direitos humanos
consagrados nos diplomas internacionais.
Na mesma esteira, a não obediência
de normas previstas em TIDH, tal qual o dever de apresentação
imediata ou sem demora ao juiz de pessoa presa em flagrante ou sem mandado
judicial pela polícia,
pode gerar dano de ordem coletivo, autorizando tanto o manejo de ação coletiva
para sua efetiva tutela quanto o uso do controle de convencionalidade.
Os interesses[2] coletivos lato sensu e os interesses individuais indisponíveis são
caracterizados pela Constituição como interesse de ordem social e pública.
Nesse sentido, não possuem
titularidade determinada, pois são comuns aos grupos, classes ou categorias de
pessoas que estão ligadas por uma mesma relação jurídica ou fática.
Sua relevância jurídico-processual,
no mesmo norte, reside no reconhecimento da necessidade de que o acesso
coletivo é preferível frente ao acesso individual do lesado à Justiça, de modo
que “a solução obtida no processo coletivo não apenas deve ser apta a evitar
decisões contraditórias como, ainda, deve conduzir a uma solução mais eficiente
da lide, porque o processo coletivo é exercido em proveito de todo o grupo
lesado” (MAZZILLI, 2013, p. 51).
Diante disso, a CRFB/88 prescreve,
no artigo 5º, o rol de direitos individuais e, destaque-se, coletivos, estabelecendo
ainda, no inciso XXXV, o acesso à Justiça não só do indivíduo, mas também de
toda coletividade.
Assim, o efeito gerado por crises de
direito pode ter influência tanto na ordem individual da pessoa quanto para
toda a coletividade, situação que, em tese, autoriza a parte lesada a requerer
resposta judicial.
Mais ainda, qualquer ação
(condenatórias, mandamentais, executivas, declaratórias e constitutivas),
conforme artigo 83 do CDC, pode se tornar coletiva, diante do caráter volátil
desses direitos, pois “inexiste taxatividade de objeto para a defesa judicial
de interesses transindividuais” (MAZZILLI, 2013, p. 797-805).
Vale ressaltar, por outra via, que,
no Brasil, os interesses ou direitos coletivos lato sensu (ou transindividuais) são gênero das espécies: direito
difuso, coletivo stricto sensu e
direito individuais homogêneos (DIDIER JR.; ZANETI JR., 2013, p. 75).
Refletindo sobre o tema, Fredie
Didier e Hermes Zaneti (2013, p. 85) apontam que tais categorias de direito
foram conceituadas para facilitar a prestação jurisdicional, sendo, portanto,
“conceitos interativos de direito material e processual, voltados para a
instrumentalidade, para a adequação ao direito material da realidade hodierna
e, dessa forma, para sua proteção pelo Pode Judiciário”.
Tais espécies se encontram previstas
no artigo 81 do Código de Defesa do Consumidor (CDC) – Lei Federal nº. 8.078,
de 11 de setembro de 1990 – que dispõe:
"Art. 81 - A defesa dos interesses e direitos dos
consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a
título coletivo.
Parágrafo único - A defesa coletiva será exercida quando se
tratar de:
I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para
efeitos deste Código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam
titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;
II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos,
para efeitos deste Código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que
seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a
parte contrária por uma relação jurídica base;
III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim
entendidos os decorrentes de origem comum."
Reforçando a definição das
categorias de direitos coletivos já trazidas pelo CDC, Hugo Nigro Mazzilli
(2013, p. 809) conceitua os interesses transindividuais da forma que se segue.
Há os i) interesses difusos – são aqueles “cujos titulares não são determináveis
e estão ligados por uma circunstância de fato. São indivisíveis porque, embora
comuns a uma categoria de pessoas, não se pode quantificar o que cabe a cada um
lesado”. Pode-se exemplificar como interesse difuso o meio ambiente. Por outro
lado, tem-se os ii) direitos coletivos strictu
sensu – ou seja, são “aqueles em torno dos quais está reunido um conjunto
determinável de pessoas (grupo, categoria ou classe), ligadas de forma
indivisível pela mesma relação jurídica básica” – e.g, os membros de um sindicato. Por fim, tem-se os iii) interesses
individuais homogêneos – de origem comum e que “são compartilhados por pessoas
que se encontram unidas pela mesma situação de fato. São divisíveis, ou seja,
quantificáveis em face dos titulares, como os consumidores que compram produto
fabricado em série com o mesmo defeito”.
Sendo assim, a práxis enseja a formação de novas categorias
de direitos coletivos que merecem tutela do Poder Judiciário. Não é diferente,
portanto, com os direitos humanos, sobretudo os advindos de tratados
internacionais que, da mesma forma que os direitos fundamentais presentes no
artigo 5º da CRFB/88, podem ser individuais ou coletivos.
Como se pode constatar, o
ordenamento jurídico não especifica um rol exaustivo de interesses difusos e coletivos
passíveis de proteção pela via da ACP. Nem poderia fazê-lo, pois os direitos e
interesses difusos e coletivos são a expressão jurídica de valores
historicamente situados, em permanente evolução conforme novos anseios da
sociedade (STF, 2009).
Na mesma linha, pondera o Supremo RE
n 163.231/SP (1999):
"Os interesses metaindividuais, ou de caráter
transindividual, constituem valores cuja titularidade transcende a esfera
meramente subjetiva, vale dizer, a dimensão puramente individual das pessoas e
das instituições. São direitos que pertencem a todos, considerados em
perspectiva global. Deles, ninguém, isoladamente, é o titular exclusivo. Não se
concentram num titular único, simplesmente porque concernem a todos, e a cada
um de nós, enquanto membros integrante da coletividade. Na real verdade, a complexidade desses múltiplos interesses não permite
sejam discriminados e identificados na lei. Os interesses difusos e coletivos
não comportam rol exaustivo. A cada momento, e em função de novas exigências impostas
pela sociedade moderna e pós-industrial, evidenciam-se novos valores,
pertencentes a todo o grupo social, cuja tutela se revela necessária e
inafastável. Os interesses transindividuais, por isso mesmo, são
inominados, embora haja alguns, mas evidentes, como os relacionados aos
direitos do consumidor ou concernentes ao patrimônio ambiental, histórico,
artístico, estético e cultural." (grifo nosso)
Dessarte, como assinala Hugo
Mazzilli (2013, p. 804), qualquer interesse coletivo lato sensu pode, em tese, ser defendido em juízo por meio da tutela
coletiva, tanto pelo Ministério Público como pelos demais colegitimados do
artigo 5º da Lei da Ação Civil Pública (LACP) – Lei nº 7.347, de 24 de julho de
1985 – e pelo art. 82 do CDC.
As teses aventadas pelos autores
citados servem de lastro para o entendimento de que a negativa da aplicação dos
TIDH de natureza supralegal, no caso concreto, pode gerar danos de ordem
coletiva.
Contextualizando a problemática,
considera-se que a lei é um ato normativo abstrato e genérico por definição. A
não observação de seus preceitos de forma sistemática pelos Tribunais gera
impedimento do gozo do direito atribuído por ela à toda coletividade.
Com outras palavras, seria o mesmo
que dizer que, sempre que o juiz interno (ou alguma autoridade pública) se nega
a aplicar o direito previsto numa fonte, a conjuntura implica o nascimento de
uma pretensão coletiva de que são titulares todas os sujeitos potencialmente
contemplados pelo mesmo direito, mas impedidos de gozá-los pela falta de
eficácia da fonte.
Assim como a lei, os TIDH, em regra,
possuem as características de serem gerais e abstratos, além de que assumem
posição privilegiada no ordenamento jurídico pátrio e podem revogar a própria
lei pela natureza de supralegalidade.
Como destaca Francisco Rezek (2011,
p. 38), “a matéria versada num tratado pode ela própria interessar de modo mais
ou menos extenso ao direto das gentes [...]”, assim como ao direito interno.
Dessa forma, pode-se expor que o
interesse coletivo surge no momento em que a norma internacional de direitos
humanos atributiva de direitos não é aplicada pelas instituições do Estado no
caso concreto.
Nesse diapasão, o reduzido grau de enforcement do TIDH – que se traduz na
falta de obediência ou aplicação ao caso concreto dos dispositivos do TIDH e da
jurisprudência correlata – gera a pretensão coletiva de requerer em juízo
tutela jurisdicional frente à ineficácia sistemática de suas disposições,
acarretando em flagrante dano transindividual.
Para exemplificar, um tratado que
versa sobre os direitos da pessoa com deficiência, com obviedade ululante,
interessa à categoria coletiva dos deficientes físicos e também a toda
sociedade. Seria uma anomalia achar que seu simples desprezo no caso concreto
poderia passar despercebido pela ordem jurídica, sem qualquer forma
instrumental de tutela processual.
Dessa forma, o reduzido grau de aplicação do TIDH causa prejuízo
generalizado a todos os titulares de direitos subjetivos fundados nas
convenções, sejam eles direitos individuais ou coletivos, pois a não
observância de normas obrigatórias resultará em conduta ilegal das autoridade
públicas e em danos transindividuais multitudinários para os destinatários da
norma, que atingem não uma só categoria de direitos coletivos, mas duas ou
três.
Com efeito, é induvidoso afirmar que
“A natural proximidade entre os direitos de natureza coletiva pode levar a
situações (não raras) em que uma mesma conduta [...] viole direitos (afirmados)
difusos, coletivos e individuais homogêneos” (DIDIER JR.; ZANETI JR., 2013, p.
85).
O que se defende não é qualquer tipo
de eficácia, mas de uma situação especial relacionada aos TIDH de hierarquia
supralegal, visto que a sua eficácia advém não da simples inobservância da lei,
mas da preferência por leis internas de hierarquia inferior que são aplicadas
em detrimento dos TIDH com atributo de supralegalidade.
Nesse sentido, a não implementação
da audiência de custódia, direito previsto na Convenção ADH e no PIDCP, pode
gerar dano de ordem coletivo, autorizando tanto o manejo de ação coletiva para
sua efetiva tutela quanto o uso do controle de convencionalidade.
Ressalta-se que o exercício do
controle de convencionalidade pelo juiz interno, em tal caso, poderia evitar
denúncia internacional por descumprimento de preceitos dos TIDH e qualificar a
tutela jurisdicional.
5 ESFORÇOS DE CONSOLIDAÇÃO DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA NO BRASIL
Diante do baixo grau de enforcement, no Brasil, do dispositivo
convencional que prevê a audiência de custódia, os legitimados para tutela
coletiva de direitos passaram a propor ações civis públicas questionando a não
implementação do direito subjetivo do preso de ser apresentado, sem demora, a
um juiz, presente na Convenção ADH e no PIDCP.
Nesse deambular, o MPF do Ceará, em
dezembro de 2010, ajuizou a ACP n.º 00.14512.10.2010.4.05.8100, objetivando,
liminarmente, compelir o Diretor Geral da Polícia Federal a instauração, em
prazo razoável, dos Procedimentos Administrativos necessários para fins de
cumprimento das disposições do artigo 9º, §3º, do Pacto Internacional de
Direitos Civis e Políticos (1966), primeira parte, no que diz respeito ao
direito de apresentação, sem demora, dos presos ou custodiados aos respectivos
juízos competentes.
Em decorrência desta ação, a
Advocacia Geral da União (AGU) encaminhou ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ)
uma proposta de Resolução para implantar as audiências.
O Conselho Nacional de Justiça, por
sua vez, autuou esta proposta de resolução no processo n.
0001731-41.2012.2.00.0000, com o escopo de disciplinar a apresentação em juízo
de toda pessoa presa, internada ou de qualquer forma mantida sob custódia do
Estado. A medida garante que a autoridade judicial possa ouvir a pessoa sobre
as circunstâncias em que se realizou o ato de custódia e decidir,
imediatamente, nos termos da legislação em vigor, sobre a sua legalidade e a
apuração de eventuais excessos.
Diante da conjuntura, o Ministro
Ricardo Lewandowski, propôs ao CNJ o Projeto “Audiência de Custódia”, elaborado
pelo Juiz Luís Geraldo Sant'Anna Lanfredi, e dirigido pelo próprio CNJ, pelo
Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) e pelo Ministério da Justiça, com o
desígnio de prevenção e combate à tortura e de estabelecer um modelo de
audiência de custódia a ser implantado no Fórum Criminal da Barra Funda em São
Paulo para os fins do artigo 310 do CPP.
Conforme enunciado pelo mesmo
Ministro, mais de 12 (doze) Estados da federação já aderiram ao projeto de
audiência de custódia, e a previsão é que, até o final de 2015, ela seja realizada
em todo o território nacional[3].
Cabe ressaltar que a implementação
do referido instituto traz benefícios de ordem política, social e
econômica, pois evita prisões desnecessárias, contribui para a ressocialização
de autores de crimes leves e representa economia de mais de R$ 4,3 bilhões por
ano aos cofres públicos, vez que a manutenção do preso custa média de R$ 3 mil
mensais.
Noutro giro, com o advento da ADIN
5.240, a questão parece ter se estabilizado, haja vista o plenário do STF ter
declarado constitucional a audiência de custódia (ou audiência de
apresentação), como será melhor visto posteriormente.
6 O PAPEL DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA NA CONCRETIZAÇÃO DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA
Como mencionado acima, o MPF ajuizou
ação civil pública – que ainda não transitou em julgado – com o propósito de
ver implementada a garantia convencional de apresentação, sem demora, do preso
ao juiz, estimulando o debate pátrio tangente à garantia da Convenção ADH e do
PIDCP.
Na mesma ação, o parquet federal também requer a
declaração de invalidade da Lei de Prisão Temporária (Lei 7.960, de 21 de
dezembro de 1989), por reportar incompatível com o artigo 7º da Convenção ADH,
que veda a possibilidade de detenções arbitrárias.
Posteriormente, a Defensoria Pública
da União (DPU), ajuizou nova ação civil pública, no Amazonas, em junho de 2014,
“cobrando do Poder Judiciário apenas a concretização de um direito previsto em
Tratados Internacionais de Direitos Humanos que o Brasil – voluntariamente
– aderiu”[4].
No pedido principal, a DPU requer ao
juiz o cumprimento da Convenção ADH (art.7º, 5) e do PIDCP (9º, 3), obrigando a
União a viabilizar a realização da audiência de custódia para todos os presos
em flagrante, com a condução, no prazo máximo de 24 (vinte e quatro) horas, do
preso à presença do juiz, com prévia intimação para o Ministério Público e para
a defesa.
De uma forma ou de outra, a decisão
pelo provimento de qualquer das ações (em outras palavras, o exercício do
controle de convencionalidade pelo juiz) tem o condão de concretizar o
dispositivo convencional violado em todo o território nacional, nacionalizando
a invalidade e concedendo enforcement a
uma norma de baixa aplicabilidade no ordenamento pátrio.
Nem seria preciso, cumpre ressaltar,
que o mandamento convencional estivesse regulamentado por norma legal, pois o
disposto no artigo 7º, 5 da Convenção ADH, e 9º, 3 do PIDCP, possui aplicação
imediata e eficácia plena no território brasileiro.
Dessarte, nos exatos termos da ACP,
anuncia o advocatus pauperum: “A Justiça Federal do Estado do Amazonas tem, aqui, uma chance
singular de nacionalizar um provimento que fará cessar mais de vinte anos de
descumprimento da CADH e do PIDCP...”.
Frente a conjuntura referenciada, pode-se
afirmar que vem se multiplicando o número de ações civis públicas veiculando
pedido de inconvencionalidade por omissão ou por incompatibilidade da norma
interna em face do TIDH, ainda que com outra nomenclatura.
É de se expor que o objetivo dessas
novas ações será sempre o de tutelar uma categoria vulnerável de pessoas, que
têm seus direitos coletivos violados em face da omissão do Estado ou de uma
norma incompatível com o TIDH.
Com o provimento da ação civil
pública, no sentido de tutelar o direito internacional violado, grande número de
pessoas, em injusto cárcere, serão beneficiadas pela coisa julgada coletiva
inerente a este tipo de ação, já que exercerá efeitos em todo o País.
7 ADIN 5.240
Em agosto de 2015, o plenário do STF
julgou improcedente a ADIN 5.240, proposta pela Associação de Delegados de
Polícia do Brasil (Adepol/Brasil), que questionava a Portaria conjunta do
Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) e da Corregedoria Geral da Justiça,
pela implementação da audiência de custódia em São Paulo.
Neste interim, a Associação alega
que a deliberação de tais órgãos públicos viola normas de competência presente
na Constituição, já que a competência para legislar sobre Direito Penal e
Processo Penal é da União (artigo 22, inciso I da CRFB/88), assim a
implementação do procedimento apenas poderia ocorrer através de lei federal
dispondo expressamente sobre a matéria, e jamais por intermédio de tal
provimento autônomo.
No mesmo passo, aduzem que a norma
repercutiu diretamente nos interesses institucionais dos delegados de polícia,
cujas atribuições são determinadas pela Constituição (artigo 144, parágrafos 4º
e 6º).
Para o STF, o procedimento da
audiência de apresentação, que consiste no direito fundamental do preso de ser
levado sem demora à presença do juiz, não inovou no ordenamento jurídico, apenas
disciplinou a Convenção Americana de Direitos Humanos (Convenção ADH), norma
vigente no País desde 1992, bem como de dispositivos do CPP.
Na óptica do Supremo, trata-se, na
verdade, de comandos de mera organização administrativa interna, ou seja, ato
de mera gestão do Tribunal, sem que interferisse na competência de outros
Poderes.
Com isso, o STF julgou improcedente
a ADIN 5.240 para declarar constitucional a audiência de custódia e, com isso,
a possibilidade de sua implementação em todo o território nacional, preenchendo
o comando normativo – até então desprovido de eficácia – do PIDCP e da Convenção
ADH.
Nesse sentido, o dispositivo do
artigo 9º, 3 do PIDCP e do artigo 7ª, 5, da Convenção ADH, passam a ter
concretude no ordenamento jurídico brasileiro, gerando benefícios de ordem
econômica, política e social para o País.
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A audiência
de custódia é importante meio para se evitar prisões arbitrárias e o tratamento
degradante de presos. Tem previsão em TIDH internalizados pelo Brasil,
inclusive com natureza jurídica de supralegalidade, sendo hierarquicamente
superior a qualquer lei.
Contudo,
tais atributos excepcionais não foram suficientes para que a audiência de
custódia fosse realidade no Brasil, permanecendo ignorada por mais de 20 anos,
ou seja, desde da vigência da Convenção ADH e do PIDCP, em 1992.
A
circunstância acarretou em dano transindividual aos presos, gerando ações civis
públicas com o escopo de ver assegurado o direito de ser apresentado em prazo
razoável a juiz diante de prisão.
Nesse
sentido, pode-se dizer que o controle judicial de convencionalidade das normas
domésticas realizado pelos juízes internos representa, no Direito Processual, o
principal mecanismo de tutela dos direitos humanos consagrados em tratados
internacionais.
Por vezes,
a teoria do controle de convencionalidade auxilia as cortes internacionais e os
órgãos de proteção internacional de direitos humanos a aumentar o grau de
eficácia do TIDH no direito interno, por meio do diálogo constante entre o
direito internacional e o direito do Estado.
Contudo,
alguns países, como o Brasil, não dispõem de uma ferramenta processual prevista
na legislação pátria com a finalidade única de proteger efetivamente a
supralegalidade do tratado frente à legislação interna, dificultando a
instrumentalização do controle de convencionalidade e levando a não aplicação
das disposições dos TIDH, quando colidentes com a lei interna.
Com efeito,
a violação aos direitos humanos, constantes em instrumentos internacionais,
representa dano à dignidade humana e requer resposta efetiva do Direito para
sua tutela qualificada.
Nessa
senda, o dano coletivo evidente gera a possibilidade de tutela interna do
direito consagrado no TIDH mediante litígio coletivo, que se convalida como
litígio de interesse público, e se apresenta como a principal forma de efetivar
as normas internacionais de direitos humanos no direito doméstico, com arrimo
no controle de convencionalidade.
Dessa forma, assim como
a audiência de custódia pôde ser fomentada no Brasil mediante controle de
convencionalidade na ação civil pública, o qual estimulou seu processo de
implementação e o consequente aumento da eficácia da Convenção ADH e do PIDCP,
conclui-se que o enforcement de uma norma
internacional pode ser também ampliada quando, em situações concretas, as ações
coletivas são utilizadas para o exercício do controle de convencionalidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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___________. Recurso Extraordinário 163.231-3 / São Paulo. Rel. Min. Maurício
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___________. Caso Acosta Calderón Vs.
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TAMS, Christian J. Enforcing
Obligations Erga Omnes in International Law. New York: Cambridge, 2005.
[1] O Estado de São Paulo e do Maranhão são exemplos pontuais
de Estados brasileiros que expressamente implementaram a audiência de custódia,
mas isso ainda continua sendo uma realidade remota. Em São Paulo, anota a
publicação do Provimento Conjunto nº 03/2015, da Presidência do Tribunal de
Justiça e Corregedoria Geral de Justiça, em 27 de janeiro - conforme publicação
do MP paulista
(http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/corregedoria_geral/Publicacoes/Minist%C3%A9rio%20P%C3%BAblico%20e%20Audi%C3%AAncia%20de%20Cust%C3%B3dia.pdf)
- que “Uma vez realizada uma prisão em flagrante, a pessoa detida deverá ser
apresentada ao Juiz de Direito, em ‘audiência de custódia’, no prazo máximo de
24 horas, oportunidade em que a autoridade judicial decidirá, após ouvido o
representante do Ministério Público, sobre a legalidade da prisão e deverá
converter a custódia por força do flagrante em prisão preventiva ou conceder ao
preso a liberdade provisória com ou sem imposição de medidas cautelares ou,
ainda, determinar a prisão domiciliar. Também nessa ocasião o advogado do preso
ou a Defensoria Pública serão ouvidos e poderão postular medidas liberatórias
ou outras em favor da pessoa detida, bem como o preso poderá denunciar eventual
excesso ou tortura a que tenha sido submetido e tais ocorrências deverão ser
apuradas de imediato. A pessoa custodiada, ainda, será entrevistada pelo
Magistrado tão somente acerca de sua qualificação, condições pessoais e
circunstâncias objetivas da sua prisão, sendo vedadas perguntas que possam
antecipar eventual instrução criminal de processo de conhecimento, bem como
deverá se submeter a exame de corpo de delito, havendo médicos legistas no
local.”
[2] Apesar das críticas doutrinárias com relação à palavra
“interesse” (e.g Fredie Didier Jr. e
Hermes Zaneti Jr [2012, p.88-94]), utiliza-se o termo indistintamente como
sinônimo de “direito” por razões didáticas. Entretanto, faz-se necessário
apresentar a visão de Hugo Mazzilli (2013, p. 55), para quem a terminologia
“interesse” é utilizada como sinônimo de pretensão de direito. O direito
coletivo, por sua vez, é o interesse corroborado em juízo mediante ações
coletivas.
[3]
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=298112.
[4] A referenciada ação civil pública proposta pela DPU está
disponível em:
<https://www.scribd.com/doc/228594540/ACP-audiencia-de-custodia>.